CIÊNCIA E RELIGIÃO - Mediunidade, transtornos dissociativos e o cid-10 f44.3: entre a espiritualidade e a psicopatologia

CIÊNCIA E RELIGIÃO - Mediunidade, transtornos dissociativos e o cid-10 f44.3: entre a espiritualidade e a psicopatologia

Data de Publicação: 28 de fevereiro de 2025 10:08:00 A intersecção entre mediunidade e transtornos dissociativos revela um campo complexo e multifacetado de estudos que desafiam a ortodoxia científica. É o que escreve o escritor e jurista Abílio Wolney Aires Neto neste artigo.

Compartilhe este conteúdo:

Por Abilio Wolney Aires Neto

Em mate´ria recente, o Jornal Opc¸a~o publicou um estudo cienti´fico conduzido por Se´rgio Vêncio, ex-secreta´rio de Sau´de de Goia´s, que investigou a relac¸a~o entre mediunidade e transtornos dissociativos, comparando a sau´de mental de me´diuns e na~o me´diuns dentro ou fora do mesmo contexto religioso. A pesquisa utilizou o Dissociative Disorders Interview Schedule (DDIS), uma ferramenta que avalia sintomas dissociativos e psicopatolo´gicos. Foram analisados 47 me´diuns e 22 volunta´rios na~o me´diuns, comparando seus resultados com dados histo´ricos de pacientes com transtorno dissociativo.

A ortodoxia cienti´fica vai se dando conta que o mundo esta´ cheio de depressivos dissociados, atormentados e doentes que a depender sa~o tratados com três ou mais tipos de antidepressivos associados simultaneamente com ansioli´ticos e indutores de sono, que sa~o necessários, pois servem de “muleta” para ajudar o paciente a suportar os transtornos que, se de um lado sa~o do campo fi´sico-psi´quico, em grande parte sa~o propriamente interfere^ncias da faculdade orga^nica da mediunidade, que os exorcismos religiosos amenizam, sem solucionar, pois os espi´ritos interferem em nossos pensamentos e atos, a ponto de chegarem a nos dirigir em muitos atos da vida.

Anos atra´s, sem graduac¸a~o na a´rea de psicologia, mas em vaga aberta para portadores de outros diplomas, tentei uma po´s-graduac¸a~o de doutorado pela PUC-GO e logo de ini´cio na~o encontrei nenhum professor que quisesse me acompanhar no pré-projeto sobre o CID F.44.3, descrito na pro´pria classificac¸a~o internacional de Doênc¸as pela OMS como “possessa~o”.

Imagem ilustrativa: META IA, por sugestão da redação CE

Espi´rita desde os 17 anos, li a respeito uma vida inteira e nos u´ltimos 20 anos intensifiquei a agenda de palestras em diversos Centros de Estudos Espi´ritas, por u´ltimo em Goia^nia, onde trabalho ha´ 15 anos. Conforme Vêncio observa, transtornos dissociativos sa~o condic¸o~es psicolo´gicas caracterizadas por uma desconexa~o ou falta de continuidade entre pensamentos, memo´rias, conscie^ncia, identidade e percepc¸a~o. Esses distu´rbios podem surgir como mecanismos de defesa em resposta a traumas ou estresse intenso, permitindo que a mente se distancie de experie^ncias dolorosas ou difi´ceis de processar.

Os principais tipos de transtornos dissociativos incluem a amne´sia dissociativa, que se manifesta pela incapacidade de recordar informac¸o~es autobiogra´ficas importantes, geralmente relacionadas a eventos trauma´ticos ou estressantes, que na~o podem ser explicadas pelo esquecimento comum. O transtorno dissociativo de identidade (TDI), anteriormente conhecido como transtorno de personalidade mu´ltipla, caracteriza-se pela presenc¸a de duas ou mais identidades ou estados de personalidade distintos que assumem o controle do comportamento da pessoa de forma recorrente. O transtorno de despersonalizac¸a~o/desrealizac¸a~o envolve experie^ncias persistentes ou recorrentes de despersonalizac¸a~o (sensac¸a~o de distanciamento de si mesmo) ou desrealizac¸a~o (sensac¸a~o de irrealidade em relac¸a~o ao ambiente).

O DDIS e´ uma entrevista estruturada desenvolvida para identificar e avaliar sintomas associados a transtornos dissociativos. Ale´m de diagnosticar esses transtornos, o DDIS tambe´m investiga a presenc¸a de outras condic¸o~es psiquia´tricas comumente associadas, como transtornos de humor, transtornos de ansiedade e histo´rico de traumas. A aplicac¸a~o dessa ferramenta permite uma compreensa~o abrangente do estado mental do indivi´duo, facilitando diagno´sticos precisos e orientac¸o~es terape^uticas adequadas.

A pesquisa de Vêncio buscou entender se a mediunidade — a capacidade de supostamente intermediar comunicac¸a~o entre espi´ritos e vivos — esta´ associada a sintomas dissociativos patolo´gicos. Ao comparar me´diuns e na~o me´diuns dentro do mesmo contexto religioso, os resultados indicaram que, embora me´diuns possam apresentar experie^ncias dissociativas durante pra´ticas mediu´nicas, essas experie^ncias na~o necessariamente configuram um transtorno dissociativo. Isso sugere que, no contexto adequado e com suporte apropriado, a mediunidade pode ser uma experie^ncia controlada e na~o patolo´gica.

Este estudo contribui para a compreensa~o da linha te^nue entre experie^ncias espirituais e sintomas dissociativos patolo´gicos. Reconhecer as diferenc¸as entre pra´ticas culturais ou religiosas e transtornos mentais e´ crucial para evitar diagno´sticos equivocados e para oferecer intervenc¸o~es terape^uticas que respeitem as crenc¸as e pra´ticas individuais.

Nesse contexto, o CID-10, especificamente o co´digo F44.3 – Estados de Transe e de Possessa~o, estabelece crite´rios para diferenciar os estados dissociativos patolo´gicos daqueles que ocorrem em ambientes culturais ou religiosos reconhecidos. O F44.3 caracteriza um estado de transe em que ha´ perda transito´ria da identidade, mas com manutenc¸a~o da conscie^ncia do meio ambiente. No entanto, a classificac¸a~o enfatiza que apenas os estados involunta´rios e na~o desejados devem ser considerados patolo´gicos, excluindo aqueles que ocorrem dentro de pra´ticas culturais ou religiosas aceitas.

Isso reforc¸a a ideia de que a mediunidade, quando exercida dentro de um contexto cultural e religioso estruturado, na~o pode ser automaticamente classificada como um transtorno dissociativo. A distinc¸a~o estabelecida pelo CID-10 evita a patologizac¸a~o de experie^ncias espirituais legi´timas, ao mesmo tempo que oferece um crite´rio diagno´stico para casos em que o transe ocorre de maneira involunta´ria e prejudicial a` funcionalidade do indivi´duo.

"Na linha tênue entre o espiritual e o psicológico, o entendimento transforma o stigma em compreensão."

Ale´m disso, e´ relevante notar que o CID-10, no co´digo F44.3, na~o menciona termos como “obsessa~o espiritual”, o que indica que na~o ha´ um reconhecimento formal desse conceito dentro da classificac¸a~o me´dica tradicional. Isso sugere que o feno^meno da obsessa~o espiritual, frequentemente descrito em tradic¸o~es religiosas e espirituais, na~o possui uma equivale^ncia direta na nosologia psiquia´trica, sendo tratado de maneira distinta no campo da espiritualidade e da doutrina espi´rita, por exemplo.

A interface entre mediunidade e transtornos dissociativos continua sendo um tema que exige investigac¸o~es interdisciplinares, considerando tanto os aspectos psicolo´gicos quanto as interpretac¸o~es culturais e religiosas. O estudo de Vencio, ao lanc¸ar luz sobre essa relac¸a~o, contribui para uma abordagem mais equilibrada e respeitosa entre cie^ncia e espiritualidade, evitando reducionismos que possam prejudicar o entendimento de experie^ncias complexas e multifacetadas.

Sob a o´tica espi´rita, a classificac¸a~o F44.3 do CID-10 poderia abranger feno^menos que Allan Kardec e outros estudiosos da doutrina classificam como obsessa~o espiritual. Para a visa~o espi´rita, muitos dos casos considerados transtornos dissociativos poderiam, na verdade, ser manifestac¸o~es mediu´nicas desequilibradas ou processos obsessivos, nos quais um espi´rito influencia negativamente o indivi´duo. Segundo essa perspectiva, a obsessa~o na~o se trata de um mero distu´rbio psicolo´gico, mas sim de uma interfere^ncia espiritual que pode ser amenizada por meio de pra´ticas como passes magne´ticos, evangelizac¸a~o e reforma i´ntima.

O me´dico espi´rita Se´rgio Filipe de Oliveira, refere^ncia em estudos sobre mediunidade e a gla^ndula pineal, argumenta que muitos diagno´sticos de transtornos dissociativos desconsideram a possibilidade da influe^ncia espiritual. Ele sugere que a gla^ndula pineal atua como um receptor para essas interac¸o~es espirituais e que feno^menos tidos como transtornos podem, em certos casos, ser manifestac¸o~es mediu´nicas descontroladas. Se´rgio Filipe aponta que o crite´rio do CID-10 que diferencia transes culturais dos patolo´gicos e´ va´lido, mas incompleto, pois na~o considera que indivi´duos fora desses contextos tambe´m podem estar passando por processos obsessivos espirituais. Para ele, a obsessa~o espiritual deveria ser investigada com seriedade pela cie^ncia, buscando me´todos diagno´sticos mais abrangentes que contemplem a interac¸a~o entre corpo, mente e espi´rito.

 
 
 
 
 
 
* É natural de Dianópolis (TO),
Juiz de Direito em Goiânia,
acadêmico de Jornalismo,
autor de 15 livros e membro  
da Academia Goiana de Letras.

 

MEDIUNIDADE  / CIÊNCIA 

Compartilhe este conteúdo:

  Seja o primeiro a comentar!

Os comentários são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam a opinião deste site. Envie seu comentário preenchendo os campos abaixo

Nome
E-mail
Localização
Comentário

 Receba Novidades